Ele é surdo há três anos. Após um acidente do destino, o pobre rapaz só escuta os próprios pensamentos, e a voz dela…em pensamento.
Ele não esquece a mão fina, os dedos longos, as covinhas nas costas, os enormes olhos tão brilhantes…e sua voz, marcante, rouca, emotiva.
Ao falar, reclamar, fingir ou brincar, o sentimento dava o tom daquela voz, que ele ouve apenas em memória…
Vai além a falta que se sente: as palavras expressavam brincadeiras, planos, sonhos…
E a voz agora é a de um locutor de rádio, anunciando baladas antigas em inglês; é de uma buzina de bicicleta; é do pega-pega no parque; é do comício; é do avião.
Perdoem-me: ele ouve sim, só não escuta; a atenção era e é toda para uma voz cada vez mais imaginária.
A voz de quem se ama é uma surdez que estremece os tímpanos; é um grito de saudade que dói até o último nervo sensível a esta questão.
A voz de “quem se ama” é fruto de muita reflexão e percalços. Aquele que cruza o inferno de Dante e se enxerga e se escuta novamente passa a ouvir seus antigos apelos, ou os novos, as aspirações recém-nascidas.
Esta voz oferta a promessa de felicidade e a sentença de despedida; ela permeia os ouvidos como o som do mar para os navegantes. Uma bússola, um compasso, um esquadro. A direção a seguir, mesmo que seja errada. Se não se seguir a ordem dada por esta voz, não há ordem, só o caos no espírito do amante desgovernado.
A ordem é amar como se o ontem não tivesse existido, se o amanhã fosse um segundo à frente, se o hoje não fosse um conceito, se irracionais fôssemos. A ordem é ouvir a canção que diz “te amo” como um disco arranhado em cada instante que o tedioso cotidiano não preenche com seu mesmismo e sua rotina. Ela só precisa dar um “oi” para tudo perder forma e assumir outro recipiente, feito água, feito alma de poeta.
Ouço a minha saudade todos os dias, porque ela vive em função do que foi bom; se não fosse, estaria ouvindo os lamentos da minha inveja morta, um ser descontente da felicidade alheia.
Ouvir a si.
Ouvir assim:
Ouvir o sim de quem partiu quando você pergunta “serei feliz sem você?” é um conforto que se desdobra como o novelo no labirinto do minotauro; leva tempo, sabedoria e esforço.
E, de volta do “muro das reflexões”, volto ao meu velho mundo para ouvir outras vozes, para afiar a audição e encontrar o som que trará matizes belas e provocar outras saudades.
Paulino Solti x Camila Barretto
“Desafio das palavras” é um jogo proposto, com o objetivo de versar sobre temas vindos de fora pra dentro; inspirar-se ao contrário. Dois poetas, cada um com seu olhar sobre o tema/título.
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